Quando a Anna volta

Eu sou como um vaso de flores, porém quebrado, daqueles cuja terra suja só fazia germinar pequenas flores murchas. Não sei dizer ao certo quem me quebrou, se foram meus pais com seus gritos e preocupações, meus professores com suas desaprovações ou mesmo aqueles que eu queria que fossem meus amigos, mas não o foram. Depois de alguns anos com os meus pedaços pelo chão, alguns artesãos disseram a minha mãe que poderiam consertar-me, que colariam meus meus pedaços, adubariam minha terra e então plantariam flores tão belas que ninguém jamais imaginaria que em quantos pedaços eu havia quebrado.

Eles me consertaram sem ao menos perguntar se eu queria que o fizessem.

As novas mudas que plantaram nunca cresceram, então decidiram utilizar flores artificiais, bem como sorrisos e sonhos também artificiais. Fui recriada em meio a frases decoradas e promessas vazias (isso está gostoso! Estou com fome. Comerei mais tarde), assim eu era o perfeito disfarce de garota normal.

Alguns anos se passaram e os pedaços começaram a descolar. A medida que um a um voltava para o chão eu me sentia mais leve, eu me reencontrava. Ninguém viu meus pedaços caindo, eu estava envolta a uma embalagem bonita e coberta de flores com cheiro de plástico, eu era uma mentira agradável e é só isso que podiam ver. É a única coisa que eles ainda veem.

Em direção ao abismo

Eu não estou totalmente perdida, não agora, mas o risco disso acontecer -e muito em breve- é alto.

Eu me vejo andando pelo caminho que leva ao caos, mas sem conseguir me conter. Contudo, dessa vez busco ajuda, busco alternativas para não me jogar no abismo de uma vez só e acabar tendo que arcar com as consequências que são piores do que a própria escuridão. Digo isso porque sou uma velha conhecida do Langley Porter Psychiatric Hospital de San Francisco na California, e não quero mais passar por esse tipo de intervenções.

Porem, comer tem sido um martírio e perder peso tem sido um prazer, uma válvula de escape de todas as memórias que voltam como fantasmas para me assombrar e me fazem duvidar se serei capaz de suportar a dor de mais um dia sem enlouquecer de vez.

Meus maiores objetivos sempre foram paz e liberdade, e eu me sinto presa numa jaula de carne e ossos, atormentada todos os segundos, essas pequenas porções de eternidade.

A base de remédios fortes, fraqueza e fome, eu durmo por dias a fio, mas não descanso. Meus pesadelos vividos são memórias de atrocidades que vivi, coisas que não desejo a ninguém, e que jamais confessarei a qualquer um que pergunte. Tenho histórias que nem os meus maiores confidentes sabem: meus diários secretos em baixo da cama. São coisas só para a minha memória -e porque não consigo esquecer, mas de pudesse, o faria. Quanto alívio esquecer traria para o meu coração. Porém… voltando…

46kg marca a balança, e isso me traz um tipo inexplicável de alívio e um sentimento de que eu sou capaz conseguir mais, de ir além dos meus supostos limites, me traz propósito, e uma pessoa com propósito pode chegar a lugares ditos inalcançáveis.

Entretanto, preciso ter cuidado. Preciso estar atenta aos riscos, não ir longe demais, principalmente não deixar isso me adoecer. E não contar a ninguém. Ana funciona bem muito melhor e tem melhores resultados quando é um segredo.

Nascer foi o meu crime

Quero apagar por séculos, e talvez para sempre. Quero parar de chorar, mas as lágrimas insistem em cair quentes pelas minhas bochechas.

Já entendi: no meu caso, viver é sofrer. E eu não quero mais sofrer. Quero a liberdade de sorrir, ou ao menos de deitar de cama e poder dormir até o próximo dia sem que pesadelos aterrorizante sobre situações do passado se façam novamente presentes.

É pedir muito, pedir para descansar? Não almejo mais ser feliz, só não quero a tristeza devastadora que rasga o meu peito noite após noite.

Meu choro é cada vez mais alto e desesperado, e mesmo assim ninguém o ouve. O que eu fiz para merecer a vida que eu levo? Eu errei.

Porém, quem não erra? Eu já me arrependi, mas parece que nunca vai ser o suficiente.

Nascer foi o meu crime, e eu serei condenada por ele até morrer.

De novo: nós

Se eu disser que não sinto falta da anorexia, estarei mentindo. A lembrança doce de estar vazia, a sensação leveza, a ideia de poder tudo simplesmente por não ter nada dentro de mim… essas memórias me fazem viajar por um universo de escuridão e dor, mas também de prazer e superação.

Eu me superava ao atingir a cada dia um limite menor, ao subir na balança e ver os números diminuírem um a um até chegar ao meu objetivo final, e então traçar uma nova meta, cada vez mais inatingível, cada vez mais perigosa.

A anorexia foi minha melhor amiga por anos, minha fiel companheira, minha confidente secreta. Ela escutou meu choro escondido no banheiro madrugadas adentro quando eu achei não ter mais forças para continuar a viver, ela segurou minha mão quando eu acreditei estar sozinha no mundo e não ter mais uma razão para seguir em frente, ela me deu forças quando eu quis desistir de tudo e partir porque a vida se tornará vazia e sem sentido. Ela foi tudo o que o que eu precisei que alguém fosse quando não havia ninguém ao meu lado.

Contudo, sabe-se bem que a anorexia não é um conto de fadas e tudo o que ela oferece, ela cobra em dobro. Lembro-me do meu corpo fraco a tremer de frio em dias de sol, das noites intermináveis na solidão das paredes brancas do hospital, do desespero ao subir na balança depois de um copo água, e do medo de alguém descobrir que eu e ela, aquela altura, éramos tão dependentes uma da outra, que tornáramos uma só.

Porém, hoje, a necessidade fala mais alto, e a dor no meu coração grita por socorro. Eu queria dizer que vejo outro caminho, outra solução, mas preciso de algo que me segure aqui, que me de a mão e não me solte, porque se soltar eu posso finalmente partir, tamanho o sofrimento -que tenho enfrentado com garras e dentes- mas que tem me vencido e me deixado em pedaços de maneira tão brusca que não sei se um dia serão capazes de ser remendados.

No fundo, eu sei que a Ana não é o ideal, mas ao mesmo tempo sinto que é o que preciso. Antes uma dor conhecida que te oferece -ao menos- micro segundos de felicidade (ainda que não seja uma felicidade real) do que uma dor que só dói -o tempo todo.

Não coma, essa é a solução

Não coma, não coma, não coma. A frase se repete na minha cabeça. Preciso ser forte, preciso conseguir. Não tenho coragem de me olhar no espelho. Quero ler Lia e Cassie e seus demônios as corroendo de dentro para fora. Quero ler a fome se transformar em lágrimas e medo e coragem, e vou seguir em frente, mesmo quebrando em mil pedaços. Acho que dessa vez ninguém será capaz de me consertar. A fome é só mais um detalhe, mas que não passa desapercebido. Ela me aflige e me tortura, mas eu me mantenho firme. Eu preciso conseguir.

Com a gilete traços riscos tortos na minhas coxas, pensando a cada investida: gorda, gorda, gorda. Como me deixei chegar a esse ponto?

Olho as minhas fotos antigas e meu coração aperta, quanto tempo vai demorar para que eu consiga novamente tudo aquilo que perdi? Quanto tempo vai demorar para que a fome me derrube na cama e a depressão e a fraqueza me façam dormir por dias a fio, esquecendo assim toda dor que carrego no meu coração?

Memórias do passado surgem como flashes na minha mente e eu só quero esquecê-los.

Eu quero que a parte que machuca da minha vida deixe de existir, mesmo que eu precise deixar de existir com ela.

Ao olhar os meus pulsos, penso nos 10 segundos de coragem insana que eu precisaria para cortá-los verticalmente e então sangrar até o meu fim. Essa é a minha ideia de uma morte tranquila, mesmo que solitária.

Cada dia é um novo sacrifício.

Eu queria lembrar como eu me senti um dia antes de querer morrer pela primeira vez. Eu queria sentir como é a vida de quem quer viver, mas estou fadada a viver no meu espiral depressivo até o meu fim, que se estende por dias, horas e minutos que parecem com uma eternidade.

Se eu pudesse deitar na minha cama e nunca mais acordar, eu o faria. É o meu desejo não concretizado. Porém, confesso, talvez não seja assim para sempre.

Dessa vez, não vou parar

Eu poderia me matar numa tarde chuvosa de inverno como num dia quente de verão, e isso era o que mais me assustava. A minha dor chegará a tal ponto que a única coisa que me importava era parar de senti-la.

O sangue corria pelas minhas pernas enquanto eu continuava a desenhar riscos tortos nas minhas coxas. Eu queria que doesse porque eu queria sentir alguma coisa diferente daquilo que torturava o meu peito, mas estava amortecida.

Eu estava morta, ainda que respirasse.

E desse jeito, aos pedaços, eu continuava a seguir em frente, lutando sempre por um número cada vez menor, embora nem isso me fizesse feliz.

Eu perdia peso a mesma velocidade que me perdia. No final, não importava o quanto eu pesasse, sempre era demais, mas eu não conseguia parar e quando todos me perguntavam “por que?” Eu sorria um desses sorrisos tristes e dizia mentiras ensaiadas tantas vezes antes que eu passará a acreditar que eram verdades.

Eu fui longe demais, embora não me sentisse no meu limite. Eu queria ir além. Aliás, eu quero ir além, custe o que custar. Dessa vez, não vou parar.

Texto de 2016

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Um tom alaranjado adentrava pela janela e dava a impressão de que lá fora poderia ser mais quente do que a minha banheira de água borbulhante, no entanto -8c tornavam aquele dia de outono quase tão frio quanto a minha forma de ver o mundo.

O banheiro cheirava a Jasmim devido aos sais de banho tailandeses que prometiam mais do que uma limpeza física e um ritmo New Age preenchia todo o ambiente.
Tive vontade de chorar, de procurar por lâminas, de rasgar a minha pele e pintar aquele momento de vermelho vivo, vermelho sangue.

Afundei rapidamente a cabeça naquela água que fazia o meu corpo arder e de repente me vi de longe, como se eu fosse uma espectadora daqueles segundos de realidade: eu era uma garota esquelética viciada em comprimidos para dormir que havia esquecido se tornar adulta. Uma menina com medo de ser mulher.

O ar começava a fazer falta, mas a visão de mim mesma que causava-me assombro, também me fascinava. Eu quis congelar o tempo e desejei não precisar mais respirar. Imaginei-me sereia presa ao pequeno pedaço de porcelana preenchido por aquele fluido translucido essencial a vida. Noutras eras eu seria atração em um circo de horrores, confinada a um aquário de água transparente com os pés presos por correntes rente ao chão.

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VENHAM TODOS VER O ENCANTO DA SEREIA SEM VOZ -Anunciariam os noticiários.
Ofegante, emergi daquele estado hipnótico. Enquanto recuperava o fôlego dei-me conta: eu sou a tal criatura e também a minha própria prisão.
Quando eu me calo, estou submersa.
Quando eu não sigo em frente, estou presa.
Quando eu me escondo atrás de sorrisos falsos, são os vidros do aquário que me separam da realidade.

A água começava a esfriar quando levantei-me tocando o meu corpo sem escamas apenas para sentir-me real. O tom quase avermelhado que outrora havia dado aqueles momentos um ar nostálgico fora trocado por um azul melancólico.
Um pequeno sorriso brotou em meu rosto e as pequenas gotas de água que escorriam pelo meu corpo brilhavam como orvalho fresco. Abri a janela e deixei que o vento frio secasse o conjunto de matéria que formava o meu eu e levasse consigo o marasmo que me consumia.
Respirei fundo de maneira que meus pulmões foram preenchidos pelo ar suave e senti-me eterna, pronta para começar um novo dia. Capaz de recomeçar a vida. De vencer toda aquela depressão.

Old photos

A única coisa que eu quero dos meus dias é emagrecer até voltar a me sentir eu.

Skin and Bones

Eu tranco a porta
Mudando o clima
Queimando o som
Então ninguém ouve mais nada
Espelhos mentem para mim, diga que você pode ver
Talvez você não esteja pronta pra me reconhecer agora
Eu sei que você pode sentir, tudo que você roubou
E você está levando, etá levando isso

Parece tão fácil
Me faça pele e ossos
Eu estou sempre de joelhos pra você
Você acaba como sempre
Quando você finge isso
Pense, por onde você esteve?

Bom, as vezes isso queima
Baby, você faz isso parar
Tudo parece tão grande
Não importa, eu não sinto nada

Isso apenas machuca um pouco
Eu continuo me sentindo uma merda
E eu acho que você não está pronta para me reconhecer agora
E é facil perceber
Dificil de admitir e
Você está acabando comigo, caramba você está acabando comigo!

Parece tão fácil
Me faça pele e ossos
Eu estou sempre de joelhos pra você
Você acaba como sempre
quando você finge isso
Pense, por onde você esteve?

Porque você sempre ganha
Você sempre ganha

Rindo como se funcionasse
Sangrando como se não doesse
Saia de perto de mim
Mesmo que você precise de mim
Me separei de você, agora eu preciso de você

Eu estou sempre de joelhos pra você
Acaba como sempre
Quando você finge
Diga, por onde você esteve?
Fácil demais, me faça em pele e ossos
Eu sempre estou de joelhos para você
Sempre me derruba assim
Quando vai embora e
Então, onde diabos você esteve?

Porque você sempre ganha, você sempre ganha, você sempre ganha
Eu vou queimar tudo isso